Cinema
Sucesso de O Artista flerta com as possibilidades verbais da linguagem audiovisual
Sérgio Rizzo
Jean Dujardin e Bérénice Bejo, em cena de O Artista: uso da imagem para dispensar palavras não dispensa as palavras |
Administrar processos de mudança corresponde a um desafio que líderes governamentais e executivos de grandes corporações conhecem bem. Não só eles, claro. Pense, por exemplo, na figura de George Valentin. Profissional reconhecido em seu campo de atuação, acomodou-se à posição confortável e preferiu subestimar o impacto das inovações que começavam a alterar as coordenadas do negócio em questão. Quando se deu conta da necessidade de adaptação aos novos tempos, resistiu. Foi deixado para escanteio e esquecido.
Valentin é o personagem-título de O Artista. Popular no período silencioso de Hollywood, ele assiste incrédulo à chegada da tecnologia que agrega som às imagens, nos anos 1920. Valentin considerava-se imune às transformações. Pagou caro.
Embora seja uma figura ficcional, os traços de Valentin foram inspirados em diversos atores que não conseguiram (ou quiseram) fazer a transição do cinema de origem, sem o uso da linguagem verbal, para os talkies, os filmes falados. Seu nome lembra propositalmente o do italiano Rodolfo Valentino, um dos galãs do período, que não enfrentou o dilema da adaptação porque morreu antes, em 1926, aos 31 anos.
Ganhador do Oscar de filme, direção (Michel Hazanavicius), ator (Jean Dujardin, o Valentin), trilha sonora (Ludovic Bource) e figurinos (Mark Bridges), O Artista provoca simpatia por narrar essa história de resistência a mudanças como se fosse ele próprio, o filme, também um representante do tempo ao qual pertence Valentin.
MetalinguagemRealizada em preto e branco, essa comédia romântica francesa não tem diálogos - exceto em momentos-chave, para obter um resultado especial. Falas aparecem em cartelas inseridas entre as cenas, como ocorria no período silencioso. As interpretações são, para os padrões naturalistas de hoje, "exageradas"; as expressões dos atores precisam "falar" sozinhas, sem a ajuda de palavras.
A trilha sonora, por sua vez, lembra o acompanhamento musical de muitas salas de exibição da época, graças à presença de um pianista, uma banda ou uma orquestra. Esses elementos de linguagem são bem trabalhados por Hazanavicius e equipe para fingir (só fingir) que se trata de um filme silencioso, pré-talkies.
Ou seja: O Artista é, na verdade, obra característica do cinema pós-moderno, ao usar a metalinguagem (um filme que trata de filmes) para criar um jogo de sentidos que o espectador contemporâneo sabe identificar, graças ao seu repertório audiovisual.
Ao fazer uma releitura lúdica da tradição narrativa do cinema em suas primeiras décadas, O Artista se aproxima de outros filmes sonoros que mimetizaram características do período silencioso. Sua ênfase nas imagens retoma um debate infindável sobre o papel que as palavras podem exercer no cinema. Há quem seja radicalmente contra o emprego de diálogos, como se eles representassem uma "muleta" para o filme, resolvendo situações e fornecendo informações que poderiam ser trabalhadas pelas imagens - mas que, por comodismo, não o são.
Por outro lado, desde que foram incorporados pelo cinema, diálogos correspondem a um dos elementos geradores de produção de sentido num filme, e não comprometem, necessariamente, seu fôlego visual. Ao contrário: podem estabelecer com as imagens, por exemplo, relações de contraste (o que vemos indica um entendimento da cena, mas o que ouvimos, de personagens e/ou música, sugere outro).
Força do diálogoEsses aparentes "ruídos" (informações contraditórias oferecidas pela dramaturgia da história) costumam alimentar ambiguidades e multiplicidade de sentidos. Filmes mais ricos são os que geram interpretações, às vezes bem distintas entre si; a carpintaria dos diálogos responde por uma parcela dessa construção multifacetada que abre portas ao espectador e o convida a "preencher lacunas" da trama.
Na escrita de um filme, espera-se que o roteirista esteja atento a esse equilíbrio, recorrendo às palavras nos momentos em que são indispensáveis ou, ao menos, justificáveis. Se um diálogo só reforça o que estamos vendo, ou substitui uma informação que poderia ser apresentada de maneira mais rica por meio de imagens, algo não está funcionando bem.
Há programas de processamento de texto para a formatação de roteiros, como o Final Draft, que indicam a porcentagem do trabalho correspondente a diálogos; assim, o autor tem como avaliar se recorreu em demasia a palavras na boca dos personagens. A porcentagem ajudaria a checar, portanto, se ele usa "muletas" nas quais apoiar a história.
RiscoA carreira de Charles Chaplin (1889-1977) exemplifica os cuidados de cineastas com o uso de palavras. Embora a sincronização do som com a imagem date de 1927, com O Cantor de Jazz (que teve sonorizados mais de 2/3 de sua duração), o criador de Carlitos só lançou o seu primeiro "talkie" integral, O Grande Ditador, em 1941.
Nesse filme, por sinal, há um célebre "bife" (diálogo de longa duração), no discurso à multidão do barbeiro judeu confundido com o ditador; a cena convive, no entanto, com momentos de poesia puramente visual, como aquela em que o portagonista brinca solitário em seu escritório com um globo terrestre.
Chaplin acreditava inicialmente que as palavras ofereciam o risco de empobrecer sua arte. Mudou de ideia, pressionado por um negócio em transformação - e um público habituado ao sonoro, considerando arcaico o modo narrativo do silencioso. Hábitos das plateias de hoje explicam por que um filme como O Artista é produto de exceção; raramente o mercado cede espaço a algo que escape a suas convenções. E, mesmo assim, espaço secundário: apesar dos Oscars e das premiações, o filme arrecadou US$ 37 milhões nos EUA até março. Montante razoável para uma produção independente de US$ 15 milhões, mas valia apenas o 85º lugar no ranking dos lançamentos dos EUA em 2011.
O mercado se orienta pelo público, que se apaixonou há mais de 80 anos pelos filmes falados. Qualquer produção que escape a esse formato será vista como extravagante - sedutoramente extravagante como O Artista, mas não mais do que isso. O mesmo vale para o PB, que sumiu nos 1970 e só retorna, por motivos especiais, em uma ou outra produção, como A Lista de Schindler (1993), que evitou chocar o público com o vermelho do sangue.
Em relação aos diálogos, deve-se levar em conta que boa parcela do público de cinema é hoje consumidora intensa da ficção televisiva. Novelas e seriados, por exemplo, têm volume grande de diálogos; é possível ouvir um capítulo de telenovela da cozinha, com o aparelho na sala, sem perder o fio da meada. Formatos, como o das sitcoms (comédias de situação), elegem as falas como ponto forte. Não causa estranheza, portanto, que esses telespectadores esperem encontrar, em suas idas ao cinema, um uso semelhante da linguagem verbal.
A revisão do gênero | |
O Artista usou linguagem muda de olho na era digital (LCPJ) Clichê funcionalValentim cruza o salão para contatar um agente, num filme de espiões. O ator deve dançar com figurantes enquanto cruza o cenário. A primeira é Peppy Miller. Ele erra a cena - e o filme usa os sucessivos erros para ilustrar o gradativo envolvimento do casal; distanciado, de início; relaxado, takes depois. O pesadelo sonoroSem dar o braço a torcer para a novidade do cine falado, Valentim sonha. E tudo à sua volta adquire som, menos sua voz. O Artista brinca com a sonoplastia dos objetos de cena e dos personagens secundários para expressar o temor do protagonista ante a ameaça dos filmes sonoros, que rondava a sua carreira.Ironia até o fimO casal Valentim e Peppy encena um número de dança ao estilo dos musicais dos anos 40. A sequência, como todo o filme, é sonorizada apenas pela trilha melódica. O fim do dueto, no entanto, marca o encerramento do filme e é a primeira vez que as falas dos personagens se tornam audíveis. Mas, mesmo nessa hora, soarão ininteligíveis. |
O silencioso cinema sonoro | |
A exemplo de O Artista, outros longas do cinema sonoro usam procedimentos típicos do período silencioso, em geral com fins humorísticos. (S.R.)A Última Loucura de Mel Brooks (Silent Movie, 1976)Popular comediante dos anos 1970 e 80, Mel Brooks narra as trapalhadas de um cineasta que viabiliza o primeiro filme silencioso em mais de 40 anos. Ninguém em Hollywood crê no projeto. Só uma palavra é dita no filme; falas das pessoas surgem em cartelas. A grande diferença com O Artista: o filme é colorido.The Heart of the World (2000)O canadense Guy Maddin relê procedimentos do cinema silencioso, especialmente do expressionismo, para narrar a história de irmãos apaixonados pela mesma mulher, a cientista que investiga o "coração do mundo". O aspecto "antigo" do cine silencioso surge em Maddin, como em Careful (1992) e My Winnipeg (2007).A Festa de Margarette (2002)Silenciosa e em preto e branco, a co-produção Brasil-EUA marca a estreia em longas do diretor e roteirista Renato Falcão (diretor de fotografia da animação Rio, de Carlos Saldanha). Pedro (Hique Gomez) planeja a festa de aniversário de sua mulher, mas enfrenta problemas. |